
Nas nuvens com Sebastian Herkner
Nuage, ‘nuvem’ em francês, destaca-se como um dos projetos mais emblemáticos do designer de mobiliário Sebastian Herkner.
O que me emociona é o retorno. É quando o cliente diz: “Estamos muito felizes aqui. Sentimos uma energia especial. Queríamos agradecer-vos.” Esse reconhecimento é impagável. Sabemos que é um trabalho técnico e profissional, mas quando sentimos que tocámos verdadeiramente a vida de alguém, isso emociona-me.
A verdade é que todos os projetos me fazem sonhar. Cada um é uma oportunidade de criar algo que ainda não existia. E isso, para mim, é o mais bonito de tudo.
Um dos nomes mais relevantes da arquitetura de interiores no Brasil, Roberto Migotto tem construído uma linguagem sofisticada, equilibrando conforto, proporção e elegância. Nesta conversa intimista, revisita o seu percurso, fala da importância de ‘ouvir’ no processo criativo e reflete sobre o que significa, afinal, viver bem.
Design em Lisboa: Lembra-se do seu primeiro projeto?
RM: Lembro-me perfeitamente. Ainda nem era arquiteto formado. Sempre soube que queria seguir arquitetura, mas sendo de uma cidade do interior, o meu pai preferia que eu fosse engenheiro civil. Insisti. A Universidade de Taubaté oferecia um curso técnico em Edificações, com módulos de elétrica e hidráulica. Fiz esse curso e percebi, sem margem para dúvidas, que o meu caminho não era a engenharia, mas sim a arquitetura.
Com essa formação, já podia assinar projetos de até 120 metros quadrados. E assim o fiz: casas em Ubatuba, Campos do Jordão, São José, Taubaté… O primeiro projeto foi uma casa de praia em Ubatuba.
DL: E qual foi o momento mais decisivo do seu percurso profissional?
RM: Quando terminei o curso, precisava de trabalhar. Vi um anúncio no jornal que procurava um jovem arquiteto. Candidatei-me, fui contratado. Mas sabia que aquele não era o meu lugar. Curiosamente, o vice-presidente da empresa – um senhor italiano – passava todos os dias pela minha sala e dizia: “Rapaz, o teu lugar não é aqui. Tens talento.”
E repetiu-o tantas vezes que, um dia, tomei a decisão de sair. Pouco depois, o João – um amigo – fez-me um convite: “Vamos abrir um atelier?” E foi aí que tudo começou. Esse momento marcou-me profundamente.
DL: A estética e o design fizeram sempre parte da sua vida?
RM: Sempre. As pessoas perguntam frequentemente onde começa um projeto. Para mim, começa na proporção. O design, a estética, tudo está interligado – mas é a proporção que dita o conforto. Gosto de peças de design pontuais, sim, mas não basta serem bonitas: têm de ter função, têm de servir o espaço e quem o habita. O que mais valorizo é criar ambientes que expressem conforto e harmonia.
DL: E onde procura e encontra inspiração?
RM: Nas viagens, mas também nas pequenas coisas do quotidiano. Um restaurante em Paris, um lobby de hotel em Nova Iorque, ou até numa cena de um filme. Recentemente, estava a ver um filme passado na Noruega e fiquei fascinado com a decoração de uma das casas. Voltei várias vezes àquela cena para observar os detalhes. Mas tudo isto tem de ser filtrado por um olhar estético treinado. Inspiramo-nos em tudo, mas é a nossa sensibilidade que selecciona.
DL: Quando entra num espaço vazio, o que procura primeiro?
RM: Procuro circulação. É a base de tudo. Tenho um olhar clínico, talvez por experiência: vejo logo quando uma porta está mal colocada ou quando uma estrutura interfere na fluidez de um espaço. Circulação e proporção são, para mim, os pilares de um bom projeto. Gosto dessa fase inicial, de destrinçar o que funciona e o que não funciona. É quase um jogo de lógica.
DL: E já tem um olhar treinado para isso, não é? Já olha e pensa que aquilo o vai atrapalhar, certo?
RM: Sim, exatamente. Por exemplo, neste projeto que estamos a ver agora, a circulação é fundamental: por onde entra a pessoa? Por onde sai? Como se move dentro do espaço? É algo que precisa de estar resolvido desde o início. E volto à questão da proporção – é impensável ver um projeto em que o percurso obriga a desviar-se de sofás ou cadeiras mal posicionadas. Tudo isso compromete a vivência do espaço.
DL: Que características definem um bom projeto de interiores?
RM: Escuta. O arquiteto tem de ser, antes de mais, um bom ouvinte. Tem de perceber como vivem as pessoas, quais são os seus hábitos, os seus desejos. Nenhum projeto é igual a outro – cada família tem o seu ritmo, os seus códigos. Um bom projeto nasce do diálogo.
Além disso, claro, a planta, a proporção do mobiliário, a circulação, a funcionalidade… Mas tudo começa na escuta atenta. E, idealmente, com uma boa dose de empatia. O nosso papel é esse: ajudar a descobrir. Mostrar possibilidades, mas também saber ouvir, interpretar. O projeto tem de refletir quem o vai habitar. Posso imprimir a minha linguagem, a minha assinatura, claro, mas não posso nunca impor. Há um equilíbrio entre identidade criativa e respeito pelo cliente.
DL: Trabalha frequentemente no limiar entre o clássico e o contemporâneo. Como é que começa o seu processo criativo?
RM: Esse diálogo entre o clássico e o contemporâneo é algo que já se tornou natural no meu trabalho. E exige muita pesquisa. No projeto Gutierrez 02, por exemplo, em Lisboa, combinámos peças contemporâneas com elementos que resgatam a herança cultural portuguesa – desde imagens antigas a uma cómoda de época. Mas não se trata de uma colagem. Tem de haver equilíbrio e rigor. Se for para apostar no clássico, que seja o clássico verdadeiro – sem imitações. Hoje em dia há muitas cópias, mas os nossos clientes valorizam a autenticidade. Mesmo que uma peça venha de Londres ou de um antiquário escondido, vale a pena quando é a certa.
DL: O que significa criar com elegância?
RM: Elegância, para mim, não está no excesso, mas na precisão. Não basta usar peças de design ou marcas de luxo – a elegância revela-se nos detalhes subtis, na forma como a marcenaria está desenhada, na fluidez dos espaços, no silêncio de um gesto bem pensado. A base de um projeto – aquilo que está nas paredes, na estrutura, na carpintaria – tem de estar muito bem resolvida. A Forbes chegou a referir-se ao meu trabalho como uma “alfaiataria da arquitetura de interiores”. Gosto dessa ideia. Acredito num desenho afinado, funcional e naturalmente elegante.
DL: Existe uma peça ou material a que volta sempre — um lugar seguro dentro da criação?
RM: A madeira. A madeira está presente em praticamente todos os meus projetos. Seja em boiseries, em tons naturais ou mesmo em lacados – a marcenaria é essencial na composição dos espaços. Dá calor, estrutura e sofisticação.
DL: A arte está quase sempre presente nos seus projetos, que lugar ocupa quando imagina um espaço?
RM: É uma presença fundamental. Mas, tal como tudo, tem de ser bem integrada. Há clientes que são colecionadores e têm obras muito relevantes – é preciso pensar logo na fase inicial onde e como essas peças vão viver no espaço.
Hoje em dia, muitos apartamentos são quase integralmente em vidro, o que dificulta a colocação de arte. Mas encontramos sempre soluções. Podemos criar painéis internos, por exemplo, que permitam pendurar obras e ao mesmo tempo funcionem como elementos arquitetónicos.
DL: Qual é o ponto de partida para criar uma casa?
RM: O ponto de partida é sempre ouvir. Ouvir com atenção. Este projeto específico, que estamos agora a desenvolver, nasceu dessa escuta. Os clientes queriam uma casa no campo – não uma casa de fim de semana convencional, mas um refúgio.
O local é Almaria, no interior de São Paulo, uma nova geração de empreendimentos com áreas amplas, quase como estâncias. São terrenos de mais de 20 mil metros quadrados, que permitem uma ligação muito direta à natureza.
Neste caso, comprámos um lote com vista para uma mata protegida, com um pôr do sol belíssimo. Os clientes – um casal cujos filhos já saíram de casa – pediram uma casa aconchegante, com muita madeira, pedra e calor humano. Uma casa para os receber a eles, mas também aos filhos e netos. E é com essas premissas que começamos: ouvindo e traduzindo desejos em espaço.
DL: O que o emociona num projeto?
RM: O que me emociona é o retorno. É quando o cliente diz: “Estamos muito felizes aqui. Sentimos uma energia especial. Queríamos agradecer-vos.” Esse reconhecimento é impagável. Sabemos que é um trabalho técnico e profissional, mas quando sentimos que tocámos verdadeiramente a vida de alguém, isso emociona-me.
DL: Qual foi o projeto que mais o desafiou e o que aprendeu com ele?
RM: Houve muitos desafios ao longo do caminho, mas destaco um projeto em particular: o Ara Sahara. Um complexo com quase 12 mil metros quadrados, no interior de Minas Gerais. O cliente conhecia um projeto nosso na Ponta do Corumbau, mais simples em linguagem, mas com proporções generosas e uma sofisticação despretensiosa.
No Ara Sahara, pediu-nos amplitude, fluidez e materiais naturais. A única exigência foi a criação de um pátio central com tamareiras. O resto era liberdade criativa total.
Foi um projeto de grande escala, com maquetes, discussões profundas, muitos estudos – e uma enorme satisfação no final. Está no meu livro e é um dos marcos do meu percurso.
DL: Qual é a diferença entre trabalhar no Brasil ou em Portugal?
RM: No Brasil, apesar de todos os desafios – políticos, económicos, sociais – temos uma vantagem enorme: a nossa mão de obra. A nossa marcenaria é extraordinária, as equipas são comprometidas, há flexibilidade. Na Europa, o processo é mais rígido. Estamos, por exemplo, a desenvolver um projeto em Londres: tudo tem de passar por um escritório local, por processos de aprovação morosos. Em Lisboa, foi diferente. Tivemos a sorte de encontrar um arquiteto local que nos deu todo o apoio. A cidade tem uma escala humana e uma energia muito especiais.
DL: E de que forma que a cidade influencia o projeto?
RM: Se estivermos a falar de projetos culturais ou públicos, o contexto urbano tem um peso muito grande. Mas mesmo em projetos residenciais, o lugar influencia. O clima, a luz, a cultura local – tudo isso se reflete nas escolhas que fazemos.
DL: O que é, na sua perspetiva, que faz de Lisboa uma cidade única?
RM: Lisboa tem uma luz inigualável. Aquela luz dourada que parece prolongar o dia… é mágica. E depois há a tradição, a cultura, a gastronomia, o som dos sinos das igrejas, as ruas de calçada… Lisboa tem uma alma muito própria.
Adoro os doces conventuais – sou fã confesso de tudo o que leva clara de ovo! E acho fascinante a história por detrás dessa doçaria, a ligação aos conventos, à tradição das freiras.
Há um charme silencioso em Lisboa que me seduz. Sempre que posso, entro numa igreja. Adoro a Basílica da Estrela, com a cúpula redonda, belíssima. E, honestamente, ainda me arrependo de não ter comprado um apartamento em Lisboa. Optei por Miami, mas Lisboa ficou-me no coração.
DL: Que artistas, arquitetos ou criadores continuam a inspirar o seu olhar?
RM: Costumo evitar citar nomes, porque são muitos. Mas admiro profundamente o Álvaro Siza Vieira – a sua arquitetura é pura, poética, com um entendimento muito fino do lugar. Tenho livros dele no escritório.
Também temos trabalhado com uma empresa portuguesa de caixilharia, a LInE, que admiro imenso. São extremamente profissionais e têm vindo a crescer no mercado brasileiro. Gosto de valorizar quem faz bem, quem trabalha com rigor.
DL: Como descobriu a Quarta Sala? Quais as marcas que incluiu nos seus projetos, sem hesitar?
RM: Conheci a QuartoSala através do Pedro d’Orey, ainda no início de um projeto em Lisboa. Hoje em dia, o mundo é muito conectado – já os conhecia digitalmente e o contacto tornou-se natural. Desde então, temos mantido uma parceria muito produtiva.
Gosto muito das marcas que representam – Minotti, Cassina, Re-vive Itália… São nomes que uso frequentemente. A QuartoSala tem curadoria, tem critério. Isso faz toda a diferença.
DL: Como é que imagina o futuro dos espaços que habitamos?
RM: Acredito que, mais do que nunca, as pessoas procuram aconchego. Conforto emocional, não apenas físico. O filósofo francês Gaston Bachelard dizia que “a casa é o nosso canto no mundo” – e essa ideia ficou comigo.
A casa é o lugar onde nos resguardamos, onde nos reconhecemos. Pode ser minimalista, pode ser maximalista – desde que tenha alma. Eu, por exemplo, não consigo finalizar um projeto sem um tapete. É ele que arremata. Se o cliente tem um cão? Optamos por materiais laváveis. Mas o tapete fica. O conforto tem de estar presente.
DL: Que conselho daria a um jovem arquiteto a trabalhar nos seus primeiros projetos?
RM: Acima de tudo, é preciso paixão. A minha geração ainda desenhava à mão, na prancheta. Hoje, os jovens começam logo no computador. Mas a tecnologia não pode substituir a sensibilidade.
É preciso investigar, errar, experimentar, estar sempre a aprender. Eu sou muito exigente com a minha equipa – o Sílvio está comigo há 25 anos e ainda hoje cobro dele como no primeiro dia. É um exercício contínuo de refinamento.
É importante também saber escutar – clientes, colaboradores, o espaço. E ter paciência: uma carreira sólida constrói-se com tempo, não com pressa.
DL: O que ainda o faz sonhar?
RM: Sonho sempre com o próximo projeto. Estamos agora a preparar o segundo livro e já penso no terceiro. Acabei de visitar uma fazenda histórica no interior de São Paulo, do século XVIII, onde querem lançar um novo conceito de habitação. Falaram do meu nome como uma referência local – e isso emociona-me.
Estamos também a iniciar um projeto num dos apartamentos mais desejados de São Paulo. E talvez venha aí um novo desafio em Lisboa…
A verdade é que todos os projetos me fazem sonhar. Cada um é uma oportunidade de criar algo que ainda não existia. E isso, para mim, é o mais bonito de tudo.
Roberto Migotto
Roberto Migotto é um dos nomes mais reconhecidos da arquitetura no Brasil, com uma carreira marcada pelo rigor técnico e sensibilidade estética, equilibrando sofisticação e conforto nos seus projetos de interiores. Iniciou o seu percurso nos anos 1980 e, mais tarde, inaugurou o seu atelier de arquitetura. Ao longo do tempo, desenvolveu uma linguagem própria, caracterizada por um estilo clean e atemporal, concebido para resistir ao tempo e a pensar em quem habita o espaço. A escuta atenta e a interpretação do cliente são pilares fundamentais no seu trabalho, refletindo uma abordagem personalizada única. Com um processo criativo pautado pelo constante diálogo entre o design clássico e contemporâneo, Migotto assina projetos residenciais, hoteleiros e institucionais em várias partes do globo, encontrando nas suas viagens e nas experiências quotidianas referências que enriquecem a sua prática.
Um dos nomes mais relevantes da arquitetura de interiores no Brasil, Roberto Migotto tem construído uma linguagem sofisticada, equilibrando conforto, proporção e elegância. Nesta conversa intimista, revisita o seu percurso, fala da importância de ‘ouvir’ no processo criativo e reflete sobre o que significa, afinal, viver bem.
Design em Lisboa: Lembra-se do seu primeiro projeto?
RM: Lembro-me perfeitamente. Ainda nem era arquiteto formado. Sempre soube que queria seguir arquitetura, mas sendo de uma cidade do interior, o meu pai preferia que eu fosse engenheiro civil. Insisti. A Universidade de Taubaté oferecia um curso técnico em Edificações, com módulos de elétrica e hidráulica. Fiz esse curso e percebi, sem margem para dúvidas, que o meu caminho não era a engenharia, mas sim a arquitetura.
Com essa formação, já podia assinar projetos de até 120 metros quadrados. E assim o fiz: casas em Ubatuba, Campos do Jordão, São José, Taubaté… O primeiro projeto foi uma casa de praia em Ubatuba.
DL: E qual foi o momento mais decisivo do seu percurso profissional?
RM: Quando terminei o curso, precisava de trabalhar. Vi um anúncio no jornal que procurava um jovem arquiteto. Candidatei-me, fui contratado. Mas sabia que aquele não era o meu lugar. Curiosamente, o vice-presidente da empresa – um senhor italiano – passava todos os dias pela minha sala e dizia: “Rapaz, o teu lugar não é aqui. Tens talento.”
E repetiu-o tantas vezes que, um dia, tomei a decisão de sair. Pouco depois, o João – um amigo – fez-me um convite: “Vamos abrir um atelier?” E foi aí que tudo começou. Esse momento marcou-me profundamente.
DL: A estética e o design fizeram sempre parte da sua vida?
RM: Sempre. As pessoas perguntam frequentemente onde começa um projeto. Para mim, começa na proporção. O design, a estética, tudo está interligado – mas é a proporção que dita o conforto. Gosto de peças de design pontuais, sim, mas não basta serem bonitas: têm de ter função, têm de servir o espaço e quem o habita. O que mais valorizo é criar ambientes que expressem conforto e harmonia.
O que me emociona é o retorno. É quando o cliente diz: “Estamos muito felizes aqui. Sentimos uma energia especial. Queríamos agradecer-vos.” Esse reconhecimento é impagável. Sabemos que é um trabalho técnico e profissional, mas quando sentimos que tocámos verdadeiramente a vida de alguém, isso emociona-me.
DL: E onde procura e encontra inspiração?
RM: Nas viagens, mas também nas pequenas coisas do quotidiano. Um restaurante em Paris, um lobby de hotel em Nova Iorque, ou até numa cena de um filme. Recentemente, estava a ver um filme passado na Noruega e fiquei fascinado com a decoração de uma das casas. Voltei várias vezes àquela cena para observar os detalhes. Mas tudo isto tem de ser filtrado por um olhar estético treinado. Inspiramo-nos em tudo, mas é a nossa sensibilidade que selecciona.
DL: Quando entra num espaço vazio, o que procura primeiro?
RM: Procuro circulação. É a base de tudo. Tenho um olhar clínico, talvez por experiência: vejo logo quando uma porta está mal colocada ou quando uma estrutura interfere na fluidez de um espaço. Circulação e proporção são, para mim, os pilares de um bom projeto. Gosto dessa fase inicial, de destrinçar o que funciona e o que não funciona. É quase um jogo de lógica.
DL: E já tem um olhar treinado para isso, não é? Já olha e pensa que aquilo o vai atrapalhar, certo?
RM: Sim, exatamente. Por exemplo, neste projeto que estamos a ver agora, a circulação é fundamental: por onde entra a pessoa? Por onde sai? Como se move dentro do espaço? É algo que precisa de estar resolvido desde o início. E volto à questão da proporção – é impensável ver um projeto em que o percurso obriga a desviar-se de sofás ou cadeiras mal posicionadas. Tudo isso compromete a vivência do espaço.
DL: Que características definem um bom projeto de interiores?
RM: Escuta. O arquiteto tem de ser, antes de mais, um bom ouvinte. Tem de perceber como vivem as pessoas, quais são os seus hábitos, os seus desejos. Nenhum projeto é igual a outro – cada família tem o seu ritmo, os seus códigos. Um bom projeto nasce do diálogo.
Além disso, claro, a planta, a proporção do mobiliário, a circulação, a funcionalidade… Mas tudo começa na escuta atenta. E, idealmente, com uma boa dose de empatia. O nosso papel é esse: ajudar a descobrir. Mostrar possibilidades, mas também saber ouvir, interpretar. O projeto tem de refletir quem o vai habitar. Posso imprimir a minha linguagem, a minha assinatura, claro, mas não posso nunca impor. Há um equilíbrio entre identidade criativa e respeito pelo cliente.
DL: Trabalha frequentemente no limiar entre o clássico e o contemporâneo. Como é que começa o seu processo criativo?
RM: Esse diálogo entre o clássico e o contemporâneo é algo que já se tornou natural no meu trabalho. E exige muita pesquisa. No projeto Gutierrez 02, por exemplo, em Lisboa, combinámos peças contemporâneas com elementos que resgatam a herança cultural portuguesa – desde imagens antigas a uma cómoda de época. Mas não se trata de uma colagem. Tem de haver equilíbrio e rigor. Se for para apostar no clássico, que seja o clássico verdadeiro – sem imitações. Hoje em dia há muitas cópias, mas os nossos clientes valorizam a autenticidade. Mesmo que uma peça venha de Londres ou de um antiquário escondido, vale a pena quando é a certa.
DL: O que significa criar com elegância?
RM: Elegância, para mim, não está no excesso, mas na precisão. Não basta usar peças de design ou marcas de luxo – a elegância revela-se nos detalhes subtis, na forma como a marcenaria está desenhada, na fluidez dos espaços, no silêncio de um gesto bem pensado. A base de um projeto – aquilo que está nas paredes, na estrutura, na carpintaria – tem de estar muito bem resolvida. A Forbes chegou a referir-se ao meu trabalho como uma “alfaiataria da arquitetura de interiores”. Gosto dessa ideia. Acredito num desenho afinado, funcional e naturalmente elegante.
DL: Existe uma peça ou material a que volta sempre — um lugar seguro dentro da criação?
RM: A madeira. A madeira está presente em praticamente todos os meus projetos. Seja em boiseries, em tons naturais ou mesmo em lacados – a marcenaria é essencial na composição dos espaços. Dá calor, estrutura e sofisticação.
DL: A arte está quase sempre presente nos seus projetos, que lugar ocupa quando imagina um espaço?
RM: É uma presença fundamental. Mas, tal como tudo, tem de ser bem integrada. Há clientes que são colecionadores e têm obras muito relevantes – é preciso pensar logo na fase inicial onde e como essas peças vão viver no espaço.
Hoje em dia, muitos apartamentos são quase integralmente em vidro, o que dificulta a colocação de arte. Mas encontramos sempre soluções. Podemos criar painéis internos, por exemplo, que permitam pendurar obras e ao mesmo tempo funcionem como elementos arquitetónicos.
A verdade é que todos os projetos me fazem sonhar. Cada um é uma oportunidade de criar algo que ainda não existia. E isso, para mim, é o mais bonito de tudo.
DL: Qual é o ponto de partida para criar uma casa?
RM: O ponto de partida é sempre ouvir. Ouvir com atenção. Este projeto específico, que estamos agora a desenvolver, nasceu dessa escuta. Os clientes queriam uma casa no campo – não uma casa de fim de semana convencional, mas um refúgio.
O local é Almaria, no interior de São Paulo, uma nova geração de empreendimentos com áreas amplas, quase como estâncias. São terrenos de mais de 20 mil metros quadrados, que permitem uma ligação muito direta à natureza.
Neste caso, comprámos um lote com vista para uma mata protegida, com um pôr do sol belíssimo. Os clientes – um casal cujos filhos já saíram de casa – pediram uma casa aconchegante, com muita madeira, pedra e calor humano. Uma casa para os receber a eles, mas também aos filhos e netos. E é com essas premissas que começamos: ouvindo e traduzindo desejos em espaço.
DL: O que o emociona num projeto?
RM: O que me emociona é o retorno. É quando o cliente diz: “Estamos muito felizes aqui. Sentimos uma energia especial. Queríamos agradecer-vos.” Esse reconhecimento é impagável. Sabemos que é um trabalho técnico e profissional, mas quando sentimos que tocámos verdadeiramente a vida de alguém, isso emociona-me.
DL: Qual foi o projeto que mais o desafiou e o que aprendeu com ele?
RM: Houve muitos desafios ao longo do caminho, mas destaco um projeto em particular: o Ara Sahara. Um complexo com quase 12 mil metros quadrados, no interior de Minas Gerais. O cliente conhecia um projeto nosso na Ponta do Corumbau, mais simples em linguagem, mas com proporções generosas e uma sofisticação despretensiosa.
No Ara Sahara, pediu-nos amplitude, fluidez e materiais naturais. A única exigência foi a criação de um pátio central com tamareiras. O resto era liberdade criativa total.
Foi um projeto de grande escala, com maquetes, discussões profundas, muitos estudos – e uma enorme satisfação no final. Está no meu livro e é um dos marcos do meu percurso.
DL: Qual é a diferença entre trabalhar no Brasil ou em Portugal?
RM: No Brasil, apesar de todos os desafios – políticos, económicos, sociais – temos uma vantagem enorme: a nossa mão de obra. A nossa marcenaria é extraordinária, as equipas são comprometidas, há flexibilidade. Na Europa, o processo é mais rígido. Estamos, por exemplo, a desenvolver um projeto em Londres: tudo tem de passar por um escritório local, por processos de aprovação morosos. Em Lisboa, foi diferente. Tivemos a sorte de encontrar um arquiteto local que nos deu todo o apoio. A cidade tem uma escala humana e uma energia muito especiais.
DL: E de que forma que a cidade influencia o projeto?
RM: Se estivermos a falar de projetos culturais ou públicos, o contexto urbano tem um peso muito grande. Mas mesmo em projetos residenciais, o lugar influencia. O clima, a luz, a cultura local – tudo isso se reflete nas escolhas que fazemos.
DL: O que é, na sua perspetiva, que faz de Lisboa uma cidade única?
RM: Lisboa tem uma luz inigualável. Aquela luz dourada que parece prolongar o dia… é mágica. E depois há a tradição, a cultura, a gastronomia, o som dos sinos das igrejas, as ruas de calçada… Lisboa tem uma alma muito própria.
Adoro os doces conventuais – sou fã confesso de tudo o que leva clara de ovo! E acho fascinante a história por detrás dessa doçaria, a ligação aos conventos, à tradição das freiras.
Há um charme silencioso em Lisboa que me seduz. Sempre que posso, entro numa igreja. Adoro a Basílica da Estrela, com a cúpula redonda, belíssima. E, honestamente, ainda me arrependo de não ter comprado um apartamento em Lisboa. Optei por Miami, mas Lisboa ficou-me no coração.
DL: Que artistas, arquitetos ou criadores continuam a inspirar o seu olhar?
RM: Costumo evitar citar nomes, porque são muitos. Mas admiro profundamente o Álvaro Siza Vieira – a sua arquitetura é pura, poética, com um entendimento muito fino do lugar. Tenho livros dele no escritório.
Também temos trabalhado com uma empresa portuguesa de caixilharia, a LInE, que admiro imenso. São extremamente profissionais e têm vindo a crescer no mercado brasileiro. Gosto de valorizar quem faz bem, quem trabalha com rigor.
DL: Como descobriu a Quarta Sala? Quais as marcas que incluiu nos seus projetos, sem hesitar?
RM: Conheci a QuartoSala através do Pedro d’Orey, ainda no início de um projeto em Lisboa. Hoje em dia, o mundo é muito conectado – já os conhecia digitalmente e o contacto tornou-se natural. Desde então, temos mantido uma parceria muito produtiva.
Gosto muito das marcas que representam – Minotti, Cassina, Re-vive Itália… São nomes que uso frequentemente. A QuartoSala tem curadoria, tem critério. Isso faz toda a diferença.
DL: Como é que imagina o futuro dos espaços que habitamos?
RM: Acredito que, mais do que nunca, as pessoas procuram aconchego. Conforto emocional, não apenas físico. O filósofo francês Gaston Bachelard dizia que “a casa é o nosso canto no mundo” – e essa ideia ficou comigo.
A casa é o lugar onde nos resguardamos, onde nos reconhecemos. Pode ser minimalista, pode ser maximalista – desde que tenha alma. Eu, por exemplo, não consigo finalizar um projeto sem um tapete. É ele que arremata. Se o cliente tem um cão? Optamos por materiais laváveis. Mas o tapete fica. O conforto tem de estar presente.
DL: Que conselho daria a um jovem arquiteto a trabalhar nos seus primeiros projetos?
RM: Acima de tudo, é preciso paixão. A minha geração ainda desenhava à mão, na prancheta. Hoje, os jovens começam logo no computador. Mas a tecnologia não pode substituir a sensibilidade.
É preciso investigar, errar, experimentar, estar sempre a aprender. Eu sou muito exigente com a minha equipa – o Sílvio está comigo há 25 anos e ainda hoje cobro dele como no primeiro dia. É um exercício contínuo de refinamento.
É importante também saber escutar – clientes, colaboradores, o espaço. E ter paciência: uma carreira sólida constrói-se com tempo, não com pressa.
DL: O que ainda o faz sonhar?
RM: Sonho sempre com o próximo projeto. Estamos agora a preparar o segundo livro e já penso no terceiro. Acabei de visitar uma fazenda histórica no interior de São Paulo, do século XVIII, onde querem lançar um novo conceito de habitação. Falaram do meu nome como uma referência local – e isso emociona-me.
Estamos também a iniciar um projeto num dos apartamentos mais desejados de São Paulo. E talvez venha aí um novo desafio em Lisboa…
A verdade é que todos os projetos me fazem sonhar. Cada um é uma oportunidade de criar algo que ainda não existia. E isso, para mim, é o mais bonito de tudo.
Roberto Migotto
Roberto Migotto é um dos nomes mais reconhecidos da arquitetura no Brasil, com uma carreira marcada pelo rigor técnico e sensibilidade estética, equilibrando sofisticação e conforto nos seus projetos de interiores. Iniciou o seu percurso nos anos 1980 e, mais tarde, inaugurou o seu atelier de arquitetura. Ao longo do tempo, desenvolveu uma linguagem própria, caracterizada por um estilo clean e atemporal, concebido para resistir ao tempo e a pensar em quem habita o espaço. A escuta atenta e a interpretação do cliente são pilares fundamentais no seu trabalho, refletindo uma abordagem personalizada única. Com um processo criativo pautado pelo constante diálogo entre o design clássico e contemporâneo, Migotto assina projetos residenciais, hoteleiros e institucionais em várias partes do globo, encontrando nas suas viagens e nas experiências quotidianas referências que enriquecem a sua prática.