Léo Shehtman: diálogo puro entre arquitetura e design

  • Fotografia GUI MORELLI

Léo Shehtman, arquiteto e designer brasileiro, é uma referência incontornável na sua área. Em tom intimista, reflete sobre a evolução do seu percurso de quatro décadas e sobre o vasto universo criativo que construiu, um trabalho que ultrapassa os limites da arquitetura e se estende ao design de mobiliário, objetos e até joalharia. De espírito inquieto e visão única, tem uma trajetória ímpar e marcada por projetos residenciais, comerciais e de interiores. A sua presença constante na CASACOR, onde participou em 36 edições, desde 1987 — representa a qualidade excecional do seu trabalho e a forma como é reconhecido pelos seus pares.

Design em Lisboa: É um dos profissionais com uma das trajetórias mais sólidas da arquitetura e do design brasileiro, com mais de quatro décadas de prática e uma presença ininterrupta na CASACOR. Quando olha para o início da sua carreira, que inquietações o moviam — e quais permanecem ainda hoje?

Léo Shehtman: De facto, tenho quase quatro décadas de participação na CASACOR, praticamente desde a primeira edição. E, ao longo deste tempo, não participei apenas uma vez. Mas creio que a vida é uma experiência que nos ensina diariamente. Se me perguntarem hoje que friozinho na barriga é que eu sentia, era a expectativa pelas revistas, a ansiedade pelo dia em que seria chamado para a CASACOR. 

Acredito que a internet mudou muita coisa, e  para melhor também. Penso que a internet permitiu que  as pessoas se tornassem mais iguais, de certa forma, que tivéssemos mais oportunidades. Por isso, procuro acompanhar a minha carreira olhando para trás, absorvendo a minha experiência, agradecendo sempre tudo o que vivi, todas as oportunidades que tive. E ao olhar em frente, procuro entender o futuro, almejando cada vez mais.

Acredito muito nesta ideia de que é a experiência do dia a dia que nos fortalece. São as dificuldades do quotidiano que nos fazem aprender. E eu sou uma pessoa extremamente positiva. Em cada recanto, em cada detalhe com que me cruzo, procuro sempre absorver algo de bom.

DL: Qual foi o momento — ou projecto — em que sentiu que tinha encontrado a sua linguagem?

LS: É muito difícil responder a esta pergunta que me fazem frequentemente Qual é o seu melhor projecto? Qual foi o projecto que lhe trouxe reconhecimento? Qual foi o projecto que o afirmou enquanto linguagem forte? Acredito que o nosso trabalho está tão enraizado no dia a dia, que que não sei como responder… O meu quotidiano fez com que fosse, porventura, amadurecendo, talvez evoluindo, provavelmente acompanhando as mudanças. O que sei é o seguinte: creio que me tornei uma pessoa conhecida, talvez pela minha contemporaneidade, pela modernidade. Sempre fui alguém que apreciou muito o moderno. E hoje, o moderno está muito ligado ao minimalismo. Por isso, revejo-me muito nesta categoria.

DL: Podemos afirmar que é desta forma que define o seu universo estético? 

LS: Sim, certamente.

DL: De que forma se inicia e evoluiu o processo criativo? Há lugar para o improviso nos seus projetos?

LS: Não gosto de rotular nada. Se existe espaço para o improviso? Existe, claro. De facto, os meus melhores momentos aconteceram durante as viagens. É a viajar que aprendo, é nas viagens que observo. E, muitas vezes, quando me refiro a uma viagem, não estou necessariamente a falar do outro lado do mundo. Às vezes, basta entrar numa casa de banho de um restaurante, ver algo e, de repente – uau! Acredito muito nesta ideia de que é a experiência do dia a dia que nos fortalece. São as dificuldades do quotidiano que nos fazem aprender. E eu sou uma pessoa extremamente positiva. Em cada recanto, em cada detalhe com que me cruzo, procuro sempre absorver algo de bom.

DL: Participou em mais de três dezenas de edições da CASACOR. Quais foram os ambientes que mais o desafiaram — conceptual ou tecnicamente — e porquê?

LS: Para mim, a CASACOR  sempre representou um momento de espetáculo, de show.
Acredito que já fui mais ousado, e penso que o público tinha essa expectativa em relação a mim, esperava algo exagerado, diferente, com muita ousadia. Hoje em dia, talvez já não me reconheça desta forma tão disruptiva, até porque os tempos mudaram, e a CASACOR também se tornou mais comercial. Há a necessidade de apresentarmos o nosso trabalho com um foco mais virado para o mercado.

Mas se tivesse de eleger três projetos, destacaria um vagão de 1957 que transformei num loft; referiria a Casa Bolha eram três bolhas insufláveis, foi uma verdadeira loucura conseguir concretizar aquele projeto inteiro… precisei da ajuda de  uma cenógrafa, houve complicações, mas foi uma proposta muitíssimo ousada. Inclusive, decorridos 25 ou 30 anos, já se veem hotéis a replicar aquele conceito. E, sem dúvida, a Casa do Fauno. Foi um projecto que resultou muito bem. Com a bênção de Deus, correu mesmo muito bem.

Hoje em dia, a palavra tendências tornou-se obsoleta. O que procuramos é estilo de vida. E o significa estilo de vida? É, precisamente, conseguir ligar a arquitetura ao design, à funcionalidade e à tecnologia. 

DL: Como decide quando uma peça deve ser protagonista? Há alguma peça que o tenha marcado especialmente?

LS: Em cada projecto há sempre uma peça marcante. Por exemplo, em relação à Casa do Fauno –  porquê esta referência? Curiosamente, porque encontrei uma escultura que representava um fauno. Nunca me teria lembrado de dar este nome ao espaço se não fosse por este acaso. A Casa do Fauno surge precisamente por ter encontrado um fauno. A Casa Bolha, por sua vez, foi assim nomeada pela criação de três bolhas insufláveis. 

No quotidiano, acontece o mesmo. Nos projetos para os clientes, há sempre algo que se destaca como protagonista: pode ser uma obra de arte muito importante que o cliente valoriza ou quer destacar, ou inclusive uma composição fotográfica que conta a sua história de vida. Muitas vezes, pode até não ser relevante para mim, mas é importante reconhecer o valor que tem para o cliente. Portanto, o protagonismo surge conforme a necessidade, de acordo com a essência e a eficiência do projecto.

DL: Com que marcas gosta especialmente de trabalhar? Há alguma que faz questão de introduzir em todos os seus projetos? Nacionais ou portugueses?

LS: Hoje, assistimos a uma enorme ascensão de marcas nacionais. O design brasileiro é, na minha opinião, maravilhoso e tem vindo a conquistar o respeito internacional. Trabalho muito com a +55, a Mula Preta, a Zeia… 

Agora, referindo marcas importadas, temos as tradicionais, claro. A B&B, que é sem dúvida uma referência, uma verdadeira escola. Há a Poliform, a Paola Lenti. Enfim, se enumerasse todas, seria uma lista infinita.

Na verdade, procuro sempre fazer um mix. Detesto chegar a um projecto, entrar numa loja e comprar tudo de uma só marca — por mais incrível que seja o catálogo. Gosto de combinar peças, de misturar referências. Acredito que é isso que confere personalidade e presença aos meus projetos.

DL: O que mudou na forma como projeta — e vê — a arquitetura com o avanço da tecnologia?

LS: Acredito que a tecnologia transformou muito o nosso estilo de projetos. Costumo, inclusivamente, dizer que antigamente viajávamos para acompanhar tendências. Hoje em dia, a palavra tendências tornou-se obsoleta. O que procuramos é estilo de vida. E o significa estilo de vida? É, precisamente, conseguir ligar a arquitetura ao design, à funcionalidade e à tecnologia. A tecnologia permitiu que os nossos projetos evoluíssem e que as nossas necessidades quotidianas se transformassem em novas formas de projetar e vivenciar os espaços.

DL: A estética é indissociável da ética? Como é que a sustentabilidade — um termo tantas vezes esvaziado — se traduz, na prática, nos seus projetos?

LS: Vou ser honesto, quando se falava em sustentabilidade, era um termo assustador. A sustentabilidade parecia algo pesado, complicado. Todas as pessoas ficavam reticentes… E isto acontecia há muitos anos. Hoje, felizmente, as pessoas começam a estar verdadeiramente conscientes da importância que a sustentabilidade tem para o nosso futuro. Por isso, nos meus projetos, faço questão de lhe dar a devida atenção — para mim, a sustentabilidade só vem enriquecer. Há quem diga questione se a sustentabilidade pode compromete o projecto. De forma nenhuma! Pelo contrário, só contribui, só acrescenta valor.

Para mim luxo é a pessoa sentir-se feliz com aquilo que criou. O luxo, na minha ótica, surge quando faço alguma coisa, olho e penso: meu Deus, sinto-me realizado. Isso é luxo.

DL: O design de mobiliário e de objetos tem vindo a ganhar protagonismo no seu trabalho. Em que momento essa dimensão passou de um detalhe complementar à arquitetura para uma linguagem com vida própria?

LS: É curioso como, na vida, vamos evoluindo e as coisas vão acontecendo.
Hoje sou apaixonado por design — sempre fui, na verdade. Aliás, a palavra design, há quatro décadas, era algo que poucas pessoas sabiam exatamente o que significava. Digo, frequentemente, que um dos pais do design é o Philippe Starck, quando cria um espremedor de laranjas ou uma escova de dentes com design, percebemos que tudo pode ter design. Foi como um convite a pouco e pouco, fui sendo chamado devagar, e gostei. Gosto de desafios, de projetos me desafiem mentalmente. Penso que são tudo formas de nos mantermos atualizados, de vivenciarmos o presente e estarmos em constante renovação.

Comecei a desenhar luminárias e mobiliário, e as empresas começaram a procurar-me. Sinto-me abençoado por ver que as pessoas gostam do meu trabalho. Na semana passada, inaugurei uma exposição de design de joias – uma colaboração com a Isabela Blanco. Se me perguntarem se alguma vez me imaginaria a desenhar um a joia. Nunca. Correu bem? Correu. Exatamente porque quando fazemos algo com garra e vontade, podemos ter uma certeza: acontece.

DL: Quando desenha uma peça como a poltrona Otto, para a Doimo Brasil, está a pensar num objeto, num espaço ou numa ideia? Onde começa o gesto criativo?

LS: Para mim, um projeto começa com o ADN da empresa. Daí ser muitíssimo importante quando nos abordam, compreender primeiro a identidade da empresa. Exemplificando com a Doimo, A Doimo trabalha o couro de uma forma inigualável. Se uma peça tinha de ser de couro, por exemplo, é compreender o ADN da empresa e conseguir criar algo que incorpore a minha linguagem, mas que, simultaneamente, torne percetível como a Doímo é excecional.

DL: O ato de desenhar objetos e mobiliário envolve uma certa intimidade com o quotidiano das pessoas. Que tipo de diálogo procura estabelecer entre forma, função e estética?

LS: A forma, a função e a estética caminham juntas. Basta observarmos, por exemplo, como a moda e a arquitetura caminham na mesma direção, hoje em dia. Vemos as grandes marcas de moda a dedicarem-se à arquitetura. Porquê? Pela singularidade das formas. As formas que usamos na arquitetura são formas que usamos na moda. 

O mundo de hoje exige-nos que consigamos absorver tudo o que está a acontecer. E que entendamos que o globo funciona como um todo. E este todo atribui uma importância e valor cada vez maior à moda, ao design, à forma e, como já referi, à tecnologia. Enfim, é o que está a acontecer à nossa volta, e eu sinto-me feliz por poder acompanhar este momento.

DL: A colaboração com marcas como Dell Anno, Dunelli ou Linee Design parece ir além da intenção comercial. Como escolhe os seus parceiros de design? Que tipo de liberdade procura nesse processo?

LS: Tudo é uma troca. Há fornecedores que se entregam tanto a nós, onde a partilha, a envolvência é tão grande, que se tornam se tornam família. A Dell Anno para mim, é mesmo um parceiro. Estou sempre ao seu lado e, da mesma forma, sei que tenho o apoio deles.

Quando um cliente me desafiou: vamos fazer um trabalho em Portugal, comprar um apartamento enorme, num sítio lindo, é claro que pensei imediatamente qual seria a loja mais importante para mim, naquele país. É a QuartoSala. Foram tão acolhedores, tão maravilhosos, tão carinhosos, que não há alguma hipótese de eu estar em Portugal e não trabalhar com eles. Por isso, atualmente, estão também integrados nos meus projetos. Quando penso em Portugal, penso logo na QuartoSala. Toda esta troca é muito especial, é algo muito bom mesmo. É energia pura. 

DL: O que é, para si, o verdadeiro luxo no design de produto? Está no conforto, na execução, na técnica ou em algo menos tangível?

LS: Hoje em dia, o luxo, o autoluxo [pensativo]… É um termo com o qual o mercado consegue faturar muito. Sempre que se fala em luxo, digo isto. Mas para mim, luxo é a pessoa sentir-se feliz com aquilo que criou. O luxo, na minha ótica, surge quando faço alguma coisa, olho e penso: meu Deus, sinto-me realizado. Isso é luxo.

Tudo o que eu faço, costumo dizer, é uma injeção de ânimo, é uma alegria de viver. Às vezes sou bem-sucedido, às vezes menos, mas procuro sempre dar o meu melhor. O mais desafiante é fazer aquilo que nunca fizemos e que nunca soubemos fazer, e ter de aprender.

DL: Em projetos como a Casa do Fauno, o mobiliário desenhado à medida ajuda a construir uma narrativa de lugar. É da opinião de que as peças têm memória? Podem carregar um significado que vai além da função?

LS: Com certeza, as peças têm memória. Nós mesmos carregamos estas memórias. Por exemplo, duvido que alguém viaje e não traga consigo algo desta experiência.
Não precisa de ser uma coleção de ímanes de frigorífico, nem uma coleção de pratos, mas nas viagens acabamos sempre por trazer alguma coisa. Pode ser o móvel de uma avó, por exemplo. Esta memória afetiva é muito, muito importante. Acredito que a memória afetiva ajude a dar vida a um projecto nosso.

DL: O design brasileiro tem conquistado um novo fôlego no contexto internacional, com um equilíbrio interessante entre sofisticação e o lado orgânico, na forma e matéria. Como observa este momento, e de que forma procura posicionar o seu trabalho nesse contexto?

LS: De facto, as formas orgânicas estão muito em voga, vemo-lo em todo o lado… Mas, neste momento, sinto-o de uma forma diferente.  Quando vejo que algo está a ser muito usado, sinto necessidade de mudar. Por isso é que, por exemplo, já não uso tanto formas orgânicas, porque acredito que já as usei bastante. Procuro algo diferente, constantemente. Às vezes, perguntam-me de onde vem? Não sei, vem de Deus. Deus inspira-me, Deus ajuda-me, e Deus permite que as coisas aconteçam.

DL: Pode partilhar connosco alguma peça ou colaboração futura que o entusiasme particularmente?

LS: Tudo o que eu faço, costumo dizer, é uma injeção de ânimo, é uma alegria de viver. Às vezes sou bem-sucedido, às vezes menos, mas procuro sempre dar o meu melhor. O mais desafiante é fazer aquilo que nunca fizemos e que nunca soubemos fazer, e ter de aprender. Esta coleção de joias foi um desafio para mim. Quando observei tudo pronto no dia do lançamento,  pensei para comigo: fui eu que fiz isto? A felicidade. 

Léo Shehtman

Léo Shehtman é uma figura incontornável da arquitetura e do design no Brasil, com uma trajetória consolidada ao longo de mais de quatro décadas. Formado em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Braz Cubas em 1980, iniciou o seu percurso profissional nos anos 80, desenvolvendo uma linguagem autoral marcada pela ousadia criativa, visão cosmopolita e sensibilidade apurada na projeção e criação de espaços. O seu trabalho tem sido destacado em diversas publicações internacionais de referência, como a Casa Vogue Brasil, Elle Decor Espanha e Marie Claire Itália. É o único profissional a ter participado nas 36 edições da CASACOR, até hoje. Enquanto designer de objetos e mobiliário, criou peças exclusivas em colaboração com marcas de grande prestígio. A sua obra revela um olhar atento às transformações do habitar contemporâneo, onde estética, funcionalidade e identidade se harmonizam.

Léo Shehtman: diálogo puro entre arquitetura e design

  • Fotografia GUI MORELLI

Léo Shehtman, arquiteto e designer brasileiro, é uma referência incontornável na sua área. Em tom intimista, reflete sobre a evolução do seu percurso de quatro décadas e sobre o vasto universo criativo que construiu, um trabalho que ultrapassa os limites da arquitetura e se estende ao design de mobiliário, objetos e até joalharia. De espírito inquieto e visão única, tem uma trajetória ímpar e marcada por projetos residenciais, comerciais e de interiores. A sua presença constante na CASACOR, onde participou em 36 edições, desde 1987 — representa a qualidade excecional do seu trabalho e a forma como é reconhecido pelos seus pares.

Design em Lisboa: É um dos profissionais com uma das trajetórias mais sólidas da arquitetura e do design brasileiro, com mais de quatro décadas de prática e uma presença ininterrupta na CASACOR. Quando olha para o início da sua carreira, que inquietações o moviam — e quais permanecem ainda hoje?

Léo Shehtman: De facto, tenho quase quatro décadas de participação na CASACOR, praticamente desde a primeira edição. E, ao longo deste tempo, não participei apenas uma vez. Mas creio que a vida é uma experiência que nos ensina diariamente. Se me perguntarem hoje que friozinho na barriga é que eu sentia, era a expectativa pelas revistas, a ansiedade pelo dia em que seria chamado para a CASACOR. 

Acredito que a internet mudou muita coisa, e  para melhor também. Penso que a internet permitiu que  as pessoas se tornassem mais iguais, de certa forma, que tivéssemos mais oportunidades. Por isso, procuro acompanhar a minha carreira olhando para trás, absorvendo a minha experiência, agradecendo sempre tudo o que vivi, todas as oportunidades que tive. E ao olhar em frente, procuro entender o futuro, almejando cada vez mais.

Acredito muito nesta ideia de que é a experiência do dia a dia que nos fortalece. São as dificuldades do quotidiano que nos fazem aprender. E eu sou uma pessoa extremamente positiva. Em cada recanto, em cada detalhe com que me cruzo, procuro sempre absorver algo de bom.

DL: Qual foi o momento — ou projecto — em que sentiu que tinha encontrado a sua linguagem?

LS: É muito difícil responder a esta pergunta que me fazem frequentemente Qual é o seu melhor projecto? Qual foi o projecto que lhe trouxe reconhecimento? Qual foi o projecto que o afirmou enquanto linguagem forte? Acredito que o nosso trabalho está tão enraizado no dia a dia, que que não sei como responder… O meu quotidiano fez com que fosse, porventura, amadurecendo, talvez evoluindo, provavelmente acompanhando as mudanças. O que sei é o seguinte: creio que me tornei uma pessoa conhecida, talvez pela minha contemporaneidade, pela modernidade. Sempre fui alguém que apreciou muito o moderno. E hoje, o moderno está muito ligado ao minimalismo. Por isso, revejo-me muito nesta categoria.

DL: Podemos afirmar que é desta forma que define o seu universo estético? 

LS: Sim, certamente.

DL: De que forma se inicia e evoluiu o processo criativo? Há lugar para o improviso nos seus projetos?

LS: Não gosto de rotular nada. Se existe espaço para o improviso? Existe, claro. De facto, os meus melhores momentos aconteceram durante as viagens. É a viajar que aprendo, é nas viagens que observo. E, muitas vezes, quando me refiro a uma viagem, não estou necessariamente a falar do outro lado do mundo. Às vezes, basta entrar numa casa de banho de um restaurante, ver algo e, de repente – uau! Acredito muito nesta ideia de que é a experiência do dia a dia que nos fortalece. São as dificuldades do quotidiano que nos fazem aprender. E eu sou uma pessoa extremamente positiva. Em cada recanto, em cada detalhe com que me cruzo, procuro sempre absorver algo de bom.

DL: Participou em mais de três dezenas de edições da CASACOR. Quais foram os ambientes que mais o desafiaram — conceptual ou tecnicamente — e porquê?

LS: Para mim, a CASACOR  sempre representou um momento de espetáculo, de show.
Acredito que já fui mais ousado, e penso que o público tinha essa expectativa em relação a mim, esperava algo exagerado, diferente, com muita ousadia. Hoje em dia, talvez já não me reconheça desta forma tão disruptiva, até porque os tempos mudaram, e a CASACOR também se tornou mais comercial. Há a necessidade de apresentarmos o nosso trabalho com um foco mais virado para o mercado.

Mas se tivesse de eleger três projetos, destacaria um vagão de 1957 que transformei num loft; referiria a Casa Bolha eram três bolhas insufláveis, foi uma verdadeira loucura conseguir concretizar aquele projeto inteiro… precisei da ajuda de  uma cenógrafa, houve complicações, mas foi uma proposta muitíssimo ousada. Inclusive, decorridos 25 ou 30 anos, já se veem hotéis a replicar aquele conceito. E, sem dúvida, a Casa do Fauno. Foi um projecto que resultou muito bem. Com a bênção de Deus, correu mesmo muito bem.

Hoje em dia, a palavra tendências tornou-se obsoleta. O que procuramos é estilo de vida. E o significa estilo de vida? É, precisamente, conseguir ligar a arquitetura ao design, à funcionalidade e à tecnologia. 

DL: Como decide quando uma peça deve ser protagonista? Há alguma peça que o tenha marcado especialmente?

LS: Em cada projecto há sempre uma peça marcante. Por exemplo, em relação à Casa do Fauno –  porquê esta referência? Curiosamente, porque encontrei uma escultura que representava um fauno. Nunca me teria lembrado de dar este nome ao espaço se não fosse por este acaso. A Casa do Fauno surge precisamente por ter encontrado um fauno. A Casa Bolha, por sua vez, foi assim nomeada pela criação de três bolhas insufláveis. 

No quotidiano, acontece o mesmo. Nos projetos para os clientes, há sempre algo que se destaca como protagonista: pode ser uma obra de arte muito importante que o cliente valoriza ou quer destacar, ou inclusive uma composição fotográfica que conta a sua história de vida. Muitas vezes, pode até não ser relevante para mim, mas é importante reconhecer o valor que tem para o cliente. Portanto, o protagonismo surge conforme a necessidade, de acordo com a essência e a eficiência do projecto.

DL: Com que marcas gosta especialmente de trabalhar? Há alguma que faz questão de introduzir em todos os seus projetos? Nacionais ou portugueses?

LS: Hoje, assistimos a uma enorme ascensão de marcas nacionais. O design brasileiro é, na minha opinião, maravilhoso e tem vindo a conquistar o respeito internacional. Trabalho muito com a +55, a Mula Preta, a Zeia… 

Agora, referindo marcas importadas, temos as tradicionais, claro. A B&B, que é sem dúvida uma referência, uma verdadeira escola. Há a Poliform, a Paola Lenti. Enfim, se enumerasse todas, seria uma lista infinita.

Na verdade, procuro sempre fazer um mix. Detesto chegar a um projecto, entrar numa loja e comprar tudo de uma só marca — por mais incrível que seja o catálogo. Gosto de combinar peças, de misturar referências. Acredito que é isso que confere personalidade e presença aos meus projetos.

DL: O que mudou na forma como projeta — e vê — a arquitetura com o avanço da tecnologia?

LS: Acredito que a tecnologia transformou muito o nosso estilo de projetos. Costumo, inclusivamente, dizer que antigamente viajávamos para acompanhar tendências. Hoje em dia, a palavra tendências tornou-se obsoleta. O que procuramos é estilo de vida. E o significa estilo de vida? É, precisamente, conseguir ligar a arquitetura ao design, à funcionalidade e à tecnologia. A tecnologia permitiu que os nossos projetos evoluíssem e que as nossas necessidades quotidianas se transformassem em novas formas de projetar e vivenciar os espaços.

DL: A estética é indissociável da ética? Como é que a sustentabilidade — um termo tantas vezes esvaziado — se traduz, na prática, nos seus projetos?

LS: Vou ser honesto, quando se falava em sustentabilidade, era um termo assustador. A sustentabilidade parecia algo pesado, complicado. Todas as pessoas ficavam reticentes… E isto acontecia há muitos anos. Hoje, felizmente, as pessoas começam a estar verdadeiramente conscientes da importância que a sustentabilidade tem para o nosso futuro. Por isso, nos meus projetos, faço questão de lhe dar a devida atenção — para mim, a sustentabilidade só vem enriquecer. Há quem diga questione se a sustentabilidade pode compromete o projecto. De forma nenhuma! Pelo contrário, só contribui, só acrescenta valor.

Para mim luxo é a pessoa sentir-se feliz com aquilo que criou. O luxo, na minha ótica, surge quando faço alguma coisa, olho e penso: meu Deus, sinto-me realizado. Isso é luxo.

DL: O design de mobiliário e de objetos tem vindo a ganhar protagonismo no seu trabalho. Em que momento essa dimensão passou de um detalhe complementar à arquitetura para uma linguagem com vida própria?

LS: É curioso como, na vida, vamos evoluindo e as coisas vão acontecendo.
Hoje sou apaixonado por design — sempre fui, na verdade. Aliás, a palavra design, há quatro décadas, era algo que poucas pessoas sabiam exatamente o que significava. Digo, frequentemente, que um dos pais do design é o Philippe Starck, quando cria um espremedor de laranjas ou uma escova de dentes com design, percebemos que tudo pode ter design. Foi como um convite a pouco e pouco, fui sendo chamado devagar, e gostei. Gosto de desafios, de projetos me desafiem mentalmente. Penso que são tudo formas de nos mantermos atualizados, de vivenciarmos o presente e estarmos em constante renovação.

Comecei a desenhar luminárias e mobiliário, e as empresas começaram a procurar-me. Sinto-me abençoado por ver que as pessoas gostam do meu trabalho. Na semana passada, inaugurei uma exposição de design de joias – uma colaboração com a Isabela Blanco. Se me perguntarem se alguma vez me imaginaria a desenhar um a joia. Nunca. Correu bem? Correu. Exatamente porque quando fazemos algo com garra e vontade, podemos ter uma certeza: acontece.

DL: Quando desenha uma peça como a poltrona Otto, para a Doimo Brasil, está a pensar num objeto, num espaço ou numa ideia? Onde começa o gesto criativo?

LS: Para mim, um projeto começa com o ADN da empresa. Daí ser muitíssimo importante quando nos abordam, compreender primeiro a identidade da empresa. Exemplificando com a Doimo, A Doimo trabalha o couro de uma forma inigualável. Se uma peça tinha de ser de couro, por exemplo, é compreender o ADN da empresa e conseguir criar algo que incorpore a minha linguagem, mas que, simultaneamente, torne percetível como a Doímo é excecional.

DL: O ato de desenhar objetos e mobiliário envolve uma certa intimidade com o quotidiano das pessoas. Que tipo de diálogo procura estabelecer entre forma, função e estética?

LS: A forma, a função e a estética caminham juntas. Basta observarmos, por exemplo, como a moda e a arquitetura caminham na mesma direção, hoje em dia. Vemos as grandes marcas de moda a dedicarem-se à arquitetura. Porquê? Pela singularidade das formas. As formas que usamos na arquitetura são formas que usamos na moda. 

O mundo de hoje exige-nos que consigamos absorver tudo o que está a acontecer. E que entendamos que o globo funciona como um todo. E este todo atribui uma importância e valor cada vez maior à moda, ao design, à forma e, como já referi, à tecnologia. Enfim, é o que está a acontecer à nossa volta, e eu sinto-me feliz por poder acompanhar este momento.

DL: A colaboração com marcas como Dell Anno, Dunelli ou Linee Design parece ir além da intenção comercial. Como escolhe os seus parceiros de design? Que tipo de liberdade procura nesse processo?

LS: Tudo é uma troca. Há fornecedores que se entregam tanto a nós, onde a partilha, a envolvência é tão grande, que se tornam se tornam família. A Dell Anno para mim, é mesmo um parceiro. Estou sempre ao seu lado e, da mesma forma, sei que tenho o apoio deles.

Quando um cliente me desafiou: vamos fazer um trabalho em Portugal, comprar um apartamento enorme, num sítio lindo, é claro que pensei imediatamente qual seria a loja mais importante para mim, naquele país. É a QuartoSala. Foram tão acolhedores, tão maravilhosos, tão carinhosos, que não há alguma hipótese de eu estar em Portugal e não trabalhar com eles. Por isso, atualmente, estão também integrados nos meus projetos. Quando penso em Portugal, penso logo na QuartoSala. Toda esta troca é muito especial, é algo muito bom mesmo. É energia pura. 

DL: O que é, para si, o verdadeiro luxo no design de produto? Está no conforto, na execução, na técnica ou em algo menos tangível?

LS: Hoje em dia, o luxo, o autoluxo [pensativo]… É um termo com o qual o mercado consegue faturar muito. Sempre que se fala em luxo, digo isto. Mas para mim, luxo é a pessoa sentir-se feliz com aquilo que criou. O luxo, na minha ótica, surge quando faço alguma coisa, olho e penso: meu Deus, sinto-me realizado. Isso é luxo.

Tudo o que eu faço, costumo dizer, é uma injeção de ânimo, é uma alegria de viver. Às vezes sou bem-sucedido, às vezes menos, mas procuro sempre dar o meu melhor. O mais desafiante é fazer aquilo que nunca fizemos e que nunca soubemos fazer, e ter de aprender.

DL: Em projetos como a Casa do Fauno, o mobiliário desenhado à medida ajuda a construir uma narrativa de lugar. É da opinião de que as peças têm memória? Podem carregar um significado que vai além da função?

LS: Com certeza, as peças têm memória. Nós mesmos carregamos estas memórias. Por exemplo, duvido que alguém viaje e não traga consigo algo desta experiência.
Não precisa de ser uma coleção de ímanes de frigorífico, nem uma coleção de pratos, mas nas viagens acabamos sempre por trazer alguma coisa. Pode ser o móvel de uma avó, por exemplo. Esta memória afetiva é muito, muito importante. Acredito que a memória afetiva ajude a dar vida a um projecto nosso.

DL: O design brasileiro tem conquistado um novo fôlego no contexto internacional, com um equilíbrio interessante entre sofisticação e o lado orgânico, na forma e matéria. Como observa este momento, e de que forma procura posicionar o seu trabalho nesse contexto?

LS: De facto, as formas orgânicas estão muito em voga, vemo-lo em todo o lado… Mas, neste momento, sinto-o de uma forma diferente.  Quando vejo que algo está a ser muito usado, sinto necessidade de mudar. Por isso é que, por exemplo, já não uso tanto formas orgânicas, porque acredito que já as usei bastante. Procuro algo diferente, constantemente. Às vezes, perguntam-me de onde vem? Não sei, vem de Deus. Deus inspira-me, Deus ajuda-me, e Deus permite que as coisas aconteçam.

DL: Pode partilhar connosco alguma peça ou colaboração futura que o entusiasme particularmente?

LS: Tudo o que eu faço, costumo dizer, é uma injeção de ânimo, é uma alegria de viver. Às vezes sou bem-sucedido, às vezes menos, mas procuro sempre dar o meu melhor. O mais desafiante é fazer aquilo que nunca fizemos e que nunca soubemos fazer, e ter de aprender. Esta coleção de joias foi um desafio para mim. Quando observei tudo pronto no dia do lançamento,  pensei para comigo: fui eu que fiz isto? A felicidade. 

Léo Shehtman

Léo Shehtman é uma figura incontornável da arquitetura e do design no Brasil, com uma trajetória consolidada ao longo de mais de quatro décadas. Formado em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Braz Cubas em 1980, iniciou o seu percurso profissional nos anos 80, desenvolvendo uma linguagem autoral marcada pela ousadia criativa, visão cosmopolita e sensibilidade apurada na projeção e criação de espaços. O seu trabalho tem sido destacado em diversas publicações internacionais de referência, como a Casa Vogue Brasil, Elle Decor Espanha e Marie Claire Itália. É o único profissional a ter participado nas 36 edições da CASACOR, até hoje. Enquanto designer de objetos e mobiliário, criou peças exclusivas em colaboração com marcas de grande prestígio. A sua obra revela um olhar atento às transformações do habitar contemporâneo, onde estética, funcionalidade e identidade se harmonizam.

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